Terminei de ler - tardiamente, confesso - uma das obras mais relevantes da história: A Revolução dos Bichos, de George Orwell. O livro, crítica assumida ao modelo ditatorial adotado na Rússia Soviética, traduz em uma fábula a morte de Lênin, a briga interna entre Stálin e Trótski, e o posterior Stalinismo - que se revelou um regime tão violento e agressivo como os outros.
O que mais me chamou a atenção - e motivou este texto - não foi a obra, em si, mas o prefácio de Orwell para a primeira edição do livro, em 1945. Intitulado "A liberdade de Imprensa", o texto ataca o que o autor classificou como "covardia intelectual", problema semelhante ao que enfrentamos no mercado cristão - aqui chegamos ao ponto central desta postagem.
A arte cristã vem sendo comercializada como qualquer outra. Temos grandes gravadoras, grandes editoras, empresários, escritores e cantores de sucesso. Onde está o problema? A organização é benéfica e necessária para a sobrevivência em um universo tão competitivo. O grande vilão é o modelo raso no qual todas as obras se baseiam.
Livros de auto-ajuda sem profundidade bíblica, canções que versam sobre a "ressureição de sonhos" ou o "cumprimento da promessa"; moldes de sucesso garantido que nunca são atacados e questionados. E onde estão os jornalistas, os artistas independentes e os pastores famosos para criticá-lo? O interesse em ser parte da indústria é maior que a insatisfação com a prática estabelecida?
Orwell arriscou escrever contra a União Soviética (URSS) quando poucos ousavam atacar o regime stalinista -- algo mais complexo que criticar os prêmios Grammy vencidos por Aline Barros e os recordes de venda da filosofia rasa de Joyce Meyer. A este discurso uníssono, o autor chamou Ortodoxia.
Em qualquer momento dado, existe uma ortodoxia, um corpo de ideias que, supostamente, todas as pessoas bem-pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas dizê-lo é uma coisa que ‘não se faz’ [...] Uma opinião genuinamente destoante quase nunca recebe a atenção devida, nem na imprensa popular nem nos periódicos mais intelectualizados.
A análise crítica do conteúdo produzido soa como uma ofensa. Todo trabalho cristão é "uma bênção", mesmo que repita um modelo comercial pré-estabelecido para dar dinheiro às gravadoras/editoras e fama aos intérpretes/autores. Basta uma análise rápida para notar semelhanças gritantes de letra e estilo nos álbuns e de discurso nos livros.
E a juventude pensante, onde está? E o tom das preleções pastorais, quando se tornará mais ácido? Quem vai fazer o que "não se faz"? Quem vai repetir a ousadia de Lutero, da Rua Azusa e do Vencedores Por Cristo? Será que, se publicados hoje, nenhum desses mereceria espaço no mercado? Orwell responde.
A questão em jogo aqui é muito simples: será que qualquer opinião, por mais impopular – por mais estúpida, até – que seja, tem o direito de ser difundida? Formule-se a questão dessa maneira, e qualquer intelectual inglês se sentirá obrigado a responder que sim. Mas quando ela se reveste de uma forma concreta, e alguém pergunta: "E que tal, por exemplo, um ataque a Stálin? Tem direito de ser difundido?", a resposta quase sempre será não.
A renovação constante do modelo de propagação do Cristianismo é essencial para a sobrevivência da mensagem. Ou acreditam que Jesus, caso viesse à Terra nos anos 2000, utilizaria apenas barcos para espalhar sua mensagem? A Internet é ferramenta essencial nesse processo por oferecer autonomia ao ouvinte, torná-lo também um curador de conteúdo.
Entretanto, sem informação e reflexão, continuaremos a reproduzir no Youtube os hits radiofônicos. Mudar-se-á o modelo, sem acrescentar um traço de autenticidade e inteligência ao que é produzido.
Entretanto, sem informação e reflexão, continuaremos a reproduzir no Youtube os hits radiofônicos. Mudar-se-á o modelo, sem acrescentar um traço de autenticidade e inteligência ao que é produzido.
[...] pode ser que, no momento em que este livro finalmente chegar ao público, minha visão do regime soviético tenha se generalizado. Mas de que isso, por si só, vai adiantar? A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço.
Se faz necessário sempre analisar criticamente o que nos é oferecido, evitando a reprodução em massa de conceitos rasos de Cristianismo. Só a análise minuciosa da Bíblia e do exemplo deixado por Cristo nos permitirá exigir dos autores estudos mais complexos da Vida. E assim, quem sabe um dia, teremos uma geração de questionadores, capazes de criticarem a si mesmos e tornarem-se melhores do que somos hoje.
O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o disco que está tocando agora.