quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Conheça o rap (e a faca amolada) de kivitz

Texto publicado originalmente no Catavento*

A igreja brasileira vive uma de suas mais longas e lastimáveis trincheiras. A pluralidade de tolices que ecoa dos incontáveis templos torna-se cada vez mais excêntrica, amplificada pelo espaço conquistado nas TVs, nas grandes gravadoras e na Política nacional. A bancada da insensatez segue sua marcha, cada vez mais distante da mensagem original do Evangelho. O cenário apocalíptico corrompe líderes e seduz pastores, mas não intimida a faca amolada travestida em verso & beat de Vitor Kivitz.

Disparando contra o modelo de vida propagado em rede nacional, kivitz -- alcunha artística do rapper paulista de 26 anos -- é profeta de uma nova geração de cristãos, moldada por blogs, podcasts e debates no universo virtual. “Os profetas que têm espaço na TV são falsos, fazem um desserviço ao Evangelho. Todos que já assisti pregaram um Evangelho que não é o mesmo que eu creio”, pontua, ao mesmo tempo em que rechaça o papel de porta-voz.

minha profissão profeta faz minha meta ser
calar tua voz e de todos que parecem com você
fazer meu povo desligar a TV
por isso pára, malafeia, mala cheia
toma vergonha na cara
- trecho de “Crente Block”

“Por muito tempo eu fui [sedento por alguém que me representasse], mas não sei se isso é saudável”, analisa. “É algo que penso bastante. Eu acho que a identificação é natural; a empatia. Se fosse outra pessoa, não gostaria que eu a representasse. Isso é mais um retrato do Brasil e dos EUA -- cultura que atualmente mais bebemos. São culturas sem líderes, políticos omissos, distantes… e os jovens acham seus líderes na arte”, exemplifica.

Com mais de três mil curtidas no Facebook e 100 mil execuções no Soundcloud, kivitz se surpreende com o alcance de suas rimas -- “esperava umas 20 mensagens”, fala sobre o dia em que gastou horas enviando faixas que prometeu no Facebook -- e vibra com o público que aglutinou, bem mais complexo que a caricatura cristã impregnada no imaginário popular. “As pessoas que admiram meu trabalho são maduras, trocam ideia e seguem a vida delas”.

Fazendo rap desde os 13 anos, kivitz tem pai pastor e mãe assistente social. Aprendeu violão ainda criança, quando tocava Djavan -- “sempre gostei de música, mas sempre preferi as letras”. Classe média, sonha cursar Filosofia, mas tem os dois pés cravados nos duros exemplos que acompanhou desde sempre. “A igreja é uma salada de realidades e a comunidade cristã em que eu cresci sempre teve como prioridade a parte social”, relata.

Influenciado pela mãe, frequentou por dez anos a Fundação Casa, em especial a de Franco da Rocha, localizada na região metropolitana de São Paulo. Nas visitas semanais, moldou um senso crítico resultante da “bíblia e da cultura judaico cristã, somadas ao rap nacional”. Jesus, Sabotage, Kamau, Rappin Hood e o pai -- o conhecido pastor Ed René Kivitz -- são referências cruzadas, explícitas ou não em sua obra.

Kivitz não lembra como o rap entrou em sua vida, mas desde que o conheceu, não hesitou em cumprir seu papel. “O rap é compromisso, ensinou Sabotage”, relembra. “Ninguém cobra de um cantor de sertanejo que ele viva o que canta, do MC sim. É a cultura. O [Mano] Brown gravou uma música com o Naldo e ouviu uma pá. A rapaziada inclusive força a barra, se mete demais (risos). Mas é o preço de ser uma cultura construída em comunidade, as pessoas se sentem parte. Acho isso lindo”, ressalta.

“Mano que sabe rimar e tem uma voz marcante virando líder de uma juventude. Graças a Deus estamos vivendo um bom momento, com artistas que assumiram essa responsabilidade. Acho que dos estilos [musicais o rap] é o que mais mantém essa característica. [É mais] maduro em relação à idolatria, babação de ovo. O rap e o Evagelho trazem essa mensagem: todos são iguais. Então fica até incoerente [ter fãs deslumbrados]”, explica.

sem a fantasia do Jesus bonzinho
sigo o nazareno loko da revolução
não o santo, barba feita, cabelo lisinho
curto aquele acusado como beberrão
que sem drink lá na festa fez da água, vinho
sou mais esse que jantou na casa do ladrão
- trecho de “O último cristão”

Igrejas engajadas

O alinhamento entre Cristianismo, Humanismo, Evangelho e rap reverbera na realidade que tem encontrado pelo Brasil. A aproximação entre a instituição igreja e a comunidade vem sendo liderada por jovens, garante kivitz. “Tenho rodado algumas comunidades completamente engajadas nas questões sociais. Já fui a eventos em igrejas em que o tema era racismo, orfandade, outro foi para discutir essa distância entre igreja e sociedade”.

“O que é bonito que eu tenho visto são jovens que tem puxado os ministérios nas igrejas. São jovens universitários, engajados em movimentos sociais, que não ouvem música gospel. Esses jovens têm assumido papel de liderança nas comunidades. Muitos compram brigas, mas é isso mesmo. Jovem tem que comprar briga, senão não muda”, relata, empolgado com a mudança em curso na comunidade cristã brasileira.

Questionado sobre a utopia da igreja ideal, kivitz joga luz sobre o papel de cada membro, desconstruindo a visão institucionalizada do Cristianismo. “A igreja é ideal [grifo da reportagem]. Ela não é perfeita, porque a igreja são pessoas. A igreja-pessoas trouxe o Evangelho vivo até hoje, mais de 2000 anos. Depois do ministério de Jesus, a igreja é o movimento popular mais duradouro e impactante da história”, enfatiza.

Dentro ou fora da igreja, as letras ácidas e impactantes rendem “inúmeros retornos, diversos testemunhos”. “Eu vejo as pessoas torcendo o nariz mais pela mensagem. O evangelho, o rap, eles incomodam. Acho que o mais gratificante pro MC é ouvir de alguém: ‘você cantou o que eu queria ter cantado, você disse o que eu queria ter dito!’ ou ‘parece que fui eu que escrevi essa musica’. Pô, eu chapo ouvindo isso”.

minha missão em cada faixa que se prensa /
é a desconstrução do que cê acha que cê pensa /
uma expansão que não se encaixa em toda crença /
[...]
imagina se tivesse um nome que surgisse /
e ouvisse nossas preces /
e cês ainda acredita no amor como saída /
ou é vaidade? tudo é vaidade
- trecho de "Vaidade"

O peso que kivitz joga sobre os ombros dos rappers contrasta com a despretensão com que analisa a cena da música cristã contemporânea. “Quem sou pra esperar algo mais. [Tô] lutando pra fazer minha parte. Cada artista tem sua ideologia, seus objetivos”. Sobre a própria obra, o paulista resume. “Artista não faz nada voltado para lugar nenhum, artista põe sua alma naquilo que faz. No meu caso é a música. Eu sou cristão, discípulo de Cristo, da linhagem ‘só por hoje’, então minhas poesias apontaram pra isso de alguma maneira. Agora, em que prateleira vão colocar minha música não é mais problema meu”, sentencia.



Primeiro EP

Produzido “a 12 mãos”, o EP “casa ≠ lar” (2015) foi lançado em dezembro e abre a discografia oficial do artista -- antes espalhada em diversas tracks disponibilizadas em serviços de streaming. O rap de kivitz também teve voz na canção "Nação da Cruz" de Daniela Araújo.

Com cinco faixas, casa ≠ lar se destaca pela excelência na produção dos beats, “orgânicos” e gravados com a participação de músicos de alto nível. O baixista que conduz o groove de “Profetas”, por exemplo, é Robinho Tavares, figura frequente nas bandas de Ed Motta, Max de Castro, Simoninha e outros grandes da música negra nacional.

Os pianos elétricos, sintetizadores e guitarras dão o tom nos melhores arranjos do disco, fugindo dos loops “engraçadinhos” ou das batidas eletrônicas retas. Desambicioso, o curto EP se encerra com kivitz esclarecendo que “se o resultado disso aqui for o sucesso, alguma coisa tá errada”. E é graças a esse descompromisso comercial que o rapper consegue encaixar “puta que lavou os pés de Cristo” e “Jesus papai noel já deu no saco” na mesma faixa (“O Último Cristão”).

Sobre o possível sucesso, kivitz é direto. “De que sucesso estamos falando, né? Uma música e uma fé que propõem o embate contra a ‘Babilônia’ não pode ser abraçada por ela. Se você for ver, o de Jesus fez sucesso: é o livro mais vendido, o nome mais falado, mas [ele] morreu aos 33 crucificado e mal falado. Abrangência é diferente de sucesso”, conclui. Complementando com trecho de “Profetas”, a análise faz sentido: “profetas sempre foram mal vistos, mal quistos [...] o dia em que o rap virar moda ele morreu”, entoa em “Profetas”.