Hábil sem exagero técnico. Complexo sem perder a sensibilidade. Em poucas palavras, este é Miguel Garcia, guitarrista, cantor, arranjador, compositor e, principalmente, poeta da vida. Autor de dois discos solo, situados entre a MPB e o Jazz, Miguel encanta por transparecer naturalidade no que faz. Seja nas palavras utilizadas durante a entrevista realizada para o alforria, nas letras ou nos solos magníficos impressos em seu trabalho, uma coisa não falta: sinceridade.
Tamanha expressão humana me aproximou do bom gosto do multi-instrumentista. Por indicação de Carlos Tomati, o guitarrista do Jô - entrevistado no blog -, fui ao myspace de Miguel Garcia (ouça mais músicas aqui) conhecer um pouco de seu trabalho. Me encantei, não simplesmente pela qualidade do que ouvi, pelo trabalho diferenciado ou pela beleza simples com que o guitarrista usa a complexidade, mas sim porque Miguel não tenta mostra algo que não é. Ele é música, como disse durante entrevista.
Nas respostas abaixo, o guitarrista revelou um pouco mais de sua vida, as experiências que o levaram a optar por um caminho musical tão pouco trilhado e as impressões que possui acerca do cenário cristão nacional. Aprendi bastante, confesso. E espero que sirva a vocês também.
alforria: Miguel, conte-nos um pouco de sua história. Como se identificou com a música e aprendeu a tocar guitarra? Quais são seus discos e quando foram lançados?
Miguel Garcia: Pelo que consigo lembrar, o exemplo de minha mãe foi determinante para que eu passasse a produzir e ser produzido por música – isso que se confunde com o próprio músico e sua história de vida, logo, eu sou a música que produzo e ela também sou eu. Eu e minha música somos um. Somos essa forma de arte que embora dispense o espaço, faz questão do tempo para dar-se a conhecer em profundidade.
Minha mãe cantava o tempo todo enquanto ocupada com tarefas domésticas. Era como um ritual sagrado nas manhãs e tardes de domingo. Hoje sei que ela agia assim num esforço tremendo para não sucumbir ao medo e à angústia, ao mal e ao sofrimento que rondavam e por vezes invadiam nossa casa em minha infância.
Minhas memórias mais antigas são povoadas de imagens, sons, aromas, semblantes carregados de emoções fortíssimas, que brotavam da ousada atitude de uma cabocla extraordinária, uma romântica incurável, que acabaria por plasmar-me à sua imagem e semelhança. Eis que tudo era bom. Era bom porque era belo, sempre que ela cantava.
Creio que meu impulso artístico mais fontal tenha se originado a partir dessa sobrevivente, que em ato rotineiro de seduzir meu coração, modelou minha estrutura na argila de sua alegria de viver, no profetismo de sua revolta contra todo tipo de opressão gerada por demônios humanos. Cresci ouvindo uma mulher carinhosa afirmando sua crença na vida, na humanidade e em Deus, sua fé em “viver e não ter a vergonha de ser feliz” - apesar das circunstancias em muito desfavoráveis: “cantar e cantar e cantar a beleza de ser uma eterna aprendiz”. Hoje sei, ela sabia que a vida poderia ser bem melhor, mas isso nunca a impediu de repetir com tenacidade, teimosia incomum que a vida: “é bonita, é bonita e é bonita!”.
Por fim, suponho que foi pegando carona na pulsão da dona Edite (minha querida mãe), que cheguei até aqui. Eis o que posso contar sobre minha história: sou sombra-de-sombras.
Guitarra
Depois de já estar interna-mente pronto para iniciar a jornada - minha saga musical e poética, foi só resolver qual seria o meu instrumento - a varinha de condão que ajudaria a realizar meus feitiços melódicos, poéticos e rítmicos. Inicialmente tive aulas de piano, como eu não tinha o instrumento para praticar, optei pelo violão e posteriormente pela guitarra elétrica, por livre e espontânea pressão das circunstâncias.
Quanto ao estudo da guitarra, fui e ainda continuo sendo “autodidata”, em outras palavras: incompetente por conta própria, embora não negue que tenha bebido de inúmeras fontes do saber guitarrístico ao longo dos anos.
Dentre as incontáveis gostaria de destacar meu amigo, grande músico e ser humano Tomati (Carlos Nascimento), que eu destaco como tendo sido uma de minhas mais importantes influências musicais e na vida como um todo. Serei eternamente grato ao Tomati e à sua mãe (Baby), pelo modo como me recebiam em sua casa, ele como a um irmão, ela como a um filho.
Trabalho
Ondas Eternas foi meu primeiro CD solo (2003). O Ondas contou com a participação de grandes nomes da música instrumental brasileira, tais como: Edu Martins, David Richard, Edmundo Cassis, Cuca Teixeira, Pepe Cubano, Bruno Cardoso, Sandro Haick, Samira, Jamile, Abigail, Júlio de Castro, Luciano Clau, Geraldo Penna, Edir Gonçalvez, entre outros.
Antes disso em (1995) arranjei e produzi o CD História de Amor, da cantora, compositora Fátima Nascimento. Faço questão de citar esse projeto que também contou com a participação de músicos de primeira água: Bruno Cardoso, David Richard, Edu Martins e Carlos Nascimento (Tomati), na faixa Filhos de Deus.
Saltando para o ano de (2004), arranjei e produzi mais um CD da cantora e compositora Fátima Nascimento, o CD Incomparável Amor, gravado e mixado no Lord G estúdios. Logo após tive a oportunidade de fazer várias participações em CDs de amigos como: Patrícia Marques, Pregador Luo, Priscila Barreto, Déio Tambasco, entre outros.
Meu CD mais recente tem como título CLARA, em homenagem a minha mulher, Fátima Clara do Nascimento. Esse projeto foi agraciado com a técnica e bom gosto de amigos, tais como: Chico Wilcox, Edu Martins, Cuca Teixeira, Bruno Cardoso, Edmundo Cassis, Wagner Rosa, Wagner Barbosa, Leandro Matsumoto, Tiago Lima, entre outros.
alforria: É difícil encontrar alguém que toque jazz no meio cristão nacional. O que o levou a este estilo musical?
MG: Bem, não ousaria dizer que sou um músico de jazz propriamente dito. E sinceramente, não saberia definir com precisão o nome do estilo ou linguagem musical que pratico. Às vezes sou tentado a chamar o que faço de fusion, mas, como é natural em tentações e quedas, logo chega a parte do sentimento de “culpa”, o que me faz declinar e dar o fora do paraíso de um auto-engano qualquer.
Nunca penso em produzir este ou aquele estilo musical. Comigo não funciona assim. Minha música aparece e pronto. Penso que seja como num parto: de repente, passado o período de gestação, a cria está lá olhando pra mim e eu olhando pra ela. Como todo pai/mãe que se preze, costumo achar belo o que trago à existência. Como indagaria o Giannetti, auto-engano? (risos)
alforria: Artistas cristãos que compõem com grande qualidade técnica são sempre criticados. Suas músicas, além de ótimas melodias, possuem letras poeticamente rebuscadas. O cristão tem preguiça de pensar?
MG: Grato a você pelas considerações bondosas acerca de minhas canções, obrigado!
Salvaguardando um cuidado com generalizações, penso que preguiça de pensar seja a sina não apenas de cristãos. Esse parece um traço do animal humano como um todo - enquanto algo funciona, praticamente ninguém se dá conta de que esse algo esteja lá.
De minha parte não faço a menor questão do rótulo artista cristão, gospel ou coisa semelhante. Do modo como entendo, ser um bom artista deveria bastar como critério. Não acredito que a arte tenha que sustentar-se sobre as pernas da religião, que tudo em arte deva servir a propósitos edificantes e ou doutrinantes. Também não acredito ter sido capaz de descrever a realidade com profundidade e exatidão nos trabalhos que produzi até agora, feito pelo qual aspiro ansiosamente hoje em dia.
Penso que tudo o que fui capaz de realizar até aqui não tenha passado de uma preparação para minhas convicções atuais. Sinto-me hoje impelido a um maior realismo em minha arte, de modo que ela não sirva de sustentação à ideologia burguesa quando essa opera em detrimento dos pobres, oprimidos e injustiçados (se é que poderia operar de qualquer outro modo), escamoteando a verdade acerca de quase tudo, inclusive, acerca da mensagem central dO Crucificado, que, como penso que confirmaria Tolstoi, seria algo como: O Reino de Deus está dentro de vós! Nunca fora ou no alto.
alforria: Há quem diga que o uso de dissonâncias e solos instrumentais atrapalha a unção do louvor.
MG: Há quem diga, sustente e até mate por aquilo que acredita ser uma verdade absoluta. De acordo com Leonardo Boff, o conceito de fundamentalismo representa exatamente a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista, que volto a dizer, trata-se apenas da vista de um ponto.
Eu fujo de pessoas e ambientes assim. Você nunca sabe onde e quem fará o papel de homem ou mulher bomba! Sinto muita pena das multidões aprisionadas por esse tipo de ideologia perversa. O sujeito que diz algo como o que você colocou na pergunta acima, como conseqüência de seu fundamentalismo religioso ou coisa semelhante, sentindo-se portador de uma “verdade” absoluta, não pode tolerar outra verdade, e seu destino é a intolerância.
A intolerância gera o desprezo do outro, e o desprezo, a agressividade, e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Daí pra frente é o delírio dos inquisi-dores! Eu como não gosto de dor, tô fora, amigo. Fui!
alforria: É possível conciliar qualidade jazzística e 'unção'?
MG: Eu traduziria qualidade jazzística como uma possível extensão da manifestação do belo, do poético, de qualquer feito realizado com amor, de maneiras e formatos di-versos, com o objetivo de fazer alguém feliz - qualquer pessoa a qualquer tempo ou lugar – Deus inclusive. E que isso não aconteça apenas através da música ou dança, no interior de templos ou catedrais, mas a todo instante, mesmo através de pequenos gestos e atitudes delicadas, que sejam capazes de expressar afeição e uma compreensão de que nenhum ser humano é causa de si mesmo ou do universo.
Isso tudo, segundo meu ponto de vista, a partir da noção de que se O Deus é um Pai amoroso, Ele não pode ser egoísta ou sofrer de crise de identidade, exigindo bajulações em troca de favores. Um pouco de dissonância: Ninguém foi criado pra glória de Deus, Ele não pode ser amoroso e exclusivista ao mesmo – ama porque ama, criou pra compartilhar.
Se traduzirmos essa palavra complicada que você usou acima - “unção” - como a coragem necessária para ser canal dessa mesma manifest-ação do belo, mesmo que isso condene o que quer que tenha sido manifestado e quem o manifestou à pena máxima do mercado, que é o não consumo (mercado esse religioso ou não), eu diria que sim, é possível conciliar qualidade “jazzística” e “unção” - produções humanas belas, corajosamente manifestadas e mantidas, inspirando os melhores sentimentos e atitudes nas pessoas, foco dos interesses Do Criador.
alforria: A música cristã nacional se tornou um produto e grandes gravadoras investem em artistas de estilos cada vez mais diferentes. Analisando sob este ponto de vista, o que ainda torna o jazz invendável no mercado?
MG: Conforme afirmei em comentários anteriores, não sou favorável ao rótulo música cristã, menos ainda ao idealismo que impulsiona o expansionismo predatório dessa tal indústria cultural gospel e, por fim, não sei muito sobre jazz, embora admita que ouço e recebo influências constantes dessa linguagem musical. Se expresso algo dentro do corpo dessa linguagem (o jazz), penso ser esse um ato puramente intuitivo. Julgo-me apenas um aprendiz desse idioma, nada além disso.
alforria: Nas rádios evangélicas as músicas soam homogêneas, de fácil assimilação. Você busca um diferencial ou pensa na aceitação do público na hora de compor?
MG: Quando faço música “não penso em nada!”. Fico com medo de pensar demais e acabar fazendo uma dessas trilhas de comercial de TV. Minha música geralmente dura entre 5 a 10 minutos cada uma. Imagino que com esse perfil estou condenado à gospel-marginalidade-music-all, sem remédio (risos).
alforria: O que falta aos músicos cristãos?
MG: Talvez o mesmo que “falta” a todo o restante do conjunto humanal: questionar as próprias certezas a respeito de si mesmo, do outro e até de Deus, por causa do amor. Faz-se cada vez mais urgente aprendermos a amar. Talvez falte espiar além da caverna-do-conjunto-de-crenças-mito-sem-lógica-alguma que insistimos em proteger por puro medo.
Talvez falte exorcizarmos os enquadramentos forjados, encaixotamentos coisificantes, mentorias várias, alienações perpétuas, tudo aquilo que acaba por diminuir o ser humano reduzindo-o a uma sub-espécie, à mentalidade canina - coisa marionetável - a uma existência puramente instintiva e vegetativa.
Talvez a carência maior do conjunto humano seja exatamente de humanidade - quanto mais humano mais divino, isso depois que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
Talvez haja carência de um tipo de transcendência que só adquirimos quando aprendemos a nos abrir e mostrar por dentro (transparência), quando por fim caminhamos na direção do outro, do amor, da aceitação, do perdão, da justiça, liberdade e fraternidade. Nesse sentido estreito, tanto faz se o sujeito é ou não adepto de algum credo religioso, ele precisa questionar suas crenças e certezas – sua pseuda verdade absoluta, para só então, ver-se liberto de idéias escravizantes e opressoras – diminuidoras da capacidade humana integral. Afinal de contas é inconcebível a idéia de reduzir o mistério a um conjunto fechado de crenças.
“É preciso amar como se não houvesse amanhã!”. Acho que isso não deixa nenhum grupo fora da arca daquilo que considero mais importante.
alforria: Quem você ouve e admira no meio cristão?
Miguel Garcia? (risos) Fátima Nascimento, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Elza Soares, Alcione, Cartola, Jamelão, Neguinho da Beija-Flor, Dicró, Bezerra da Silva, Felix Júnior, Rosa Passos, Chico Pinheiro, Zeca Pagodinho, Fátima Guedes, Gilberto Gil, Edu Lobo, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, Guinga, Ivan Lins e Victor Martins, Egberto Gismontti, Verônica Sabino, Milton Nascimento, Filó Machado, Edu Martins, João Alexandre, Gláucia Carvalho, Cintia e Silvia, Tomati, Sandro Haick, João Bosco, Djavan, etc, etc...Ah! E minha mãe, claro!
alforria: Obrigado pela entrevista, Miguel. Deus abençoe sua vida e seu ministério.
MG: Eu é que agradeço Rafael. Obrigado por sua atenção, empenho e delicadeza.